Os impérios e a hierarquia do poder
Os dirigentes europeus riem de quê quando vão a Kiev ou a Washington?
Washington, 3 de Março de 2023, o presidente Joe Biden recebe Olaf Sholz na sala imperial (oval) da Casa Branca. O presidente Biden, com visíveis dificuldades de expressão, lê umas fichas que tenta esconder no colo e profere as frases que lá devem estar escritas: Agradece a Olaf Sholz o apoio da Alemanha à Ucrânia.
A cena é reveladora e antiga: O velho imperador recebe o submisso e quase envergonhado governador de uma velha colónia e agradece-lhe o apoio que este está a dar a uma nova colónia, atacada por um império inimigo. A Ucrânia é um território nos confins do império, como em tempos foram a Germania, a terra dos tedescos, aqueles que não falavam latim, a Gália, a Pérsia e até a Escócia. Os impérios sempre tiveram problemas nas suas fronteiras. Em 2023 o governador da província da Germânia, aquele que tem o poder subdelegado do imperador para a Europa, foi a Washington reafirmar fidelidade e prometer continuar a servir o imperador para este juntar a Ucrânia ao império.
Estamos a reviver uma situação clássica. A guerra na Ucrânia é uma guerra imperial e a primeira questão que os europeus deviam reconhecer ( se tivessem estudado história) é que não são aliados do império: são súbditos. Do que se trata da Ucrânia é de um exercício de poder imperial. Todas as referências a Direito Internacional, a soberania, a guerras justas são fogo-de-artifício. O filósofo inglês Bertrand Russell definiu o poder como “a produção de efeitos pretendidos”, o poder reside, não na produção real de efeitos, mas sim, na capacidade de produzi-los. Trata-se neste caso e mais uma vez na capacidade dos impérios em produzir efeitos. O efeito, neste caso, é o do império apresentar uma ação de conquista de território e de disputa com outro império como a defesa de um direito de um pobre povo à sua liberdade, como um ato de desinteressada bondade em nome de sagrados princípios! Estamos na velhíssima história do Império do Bem contra os bárbaros para lhes levarem as delícias da sua civilização, mas neste caso sem enviar os seus legionários, mas enviando armas aos indígenas.
A guerra na Ucrânia só tem a ver com a balança de poderes e não com o direito internacional declarado igual para todos os países. É uma guerra entre superpotências, um conceito assumido nas relações internacionais, e, segundo Adriano Moreira, num artigo que mantem a atualidade da revista Nação e Defesa, de 1984 “um estatuto político que se ganha e que se perde à margem de quaisquer variações do direito internacional, que se relativiza conforme a definição real do teatro político em causa.
Adriano Moreira, que políticos e fazedores de opinião merecidamente referiram como um dos mais importantes pensadores portugueses do século XX na ocasião da sua morte, deveria ser lido e as suas análises (o que é muito diferente de opinião) serem tidas em conta para perceber o essencial do tempo presente e agir de modo a não cometer os erros do passado. Infelizmente os políticos, incluindo os dos topo do Estado, até nos elogios fúnebres são hipócritas. Escreveu Adriano Moreira sobre o sistema de poderes mundiais do pós-Segunda Guerra:
“A construção aristocrática da vida internacional implica, tal como na vassalagem do regime anterior, que a pirâmide hierárquica se torne mais complexa à medida que o teatro político se alarga. Assim, no Ato Geral da Conferência de Berlim de 26 de Fevereiro de 1885, é muito vasto o número de países que se assumem como diretório do mundo ao determinar as regras que presidirão à ocupação das terras ainda não “senhoriadas”, especialmente a África, e o conceito diferenciador é o de nações civilizadas. Todos os restantes países do mundo, a maior parte dos quais se chamará “terceiro-mundo” nos nossos dias, são considerados pequenas potências em relação aos signatários, e mantêm-se obrigados a aceitar a nova ordem.”
“No pacto da Sociedade das Nações (SDN), depois de feita a prova habitual e periódica da guerra (IGG), clama-se pela liberdade das nações, mas o Conselho consagra o princípio aristocrático ao designar os vencedores para seus membros permanentes, onde os EUA não entram por razões de política interna, mas onde estão presentes com o expresso reconhecimento, feito pelo Pacto, da doutrina de Monroe. O objetivo da experiência (política) nazi era o de hierarquizar os Estados europeus sob a supremacia de um Estado diretor, que seria a Alemanha, mas, ganha a guerra pela Grande Aliança dos países democráticos, o princípio aristocrático voltou a ser consagrado na Carta da ONU, ao definir a composição e competência do Conselho de Segurança. Apenas os membros permanentes: EUA, URSS, Inglaterra, França e China, possuem o chamado direito de veto e, definido o Conselho como mandatário de todos os Estados, a sua responsabilidade pela paz e segurança internacionais vem acompanhada da obrigatoriedade das decisões que tomar nesse domínio, podendo implementá-las pela força.”
“Todavia os factos evolucionaram de maneira que o permanente critério do poder efetivo faria desatualizar rapidamente os textos da ONU, para refinar o princípio aristocrático no sentido de produzir o conceito de superpotência, majestade dependente da posse do ”fogo nuclear.” O Acordo Russo-Americano de 22 de Junho de 1973 sobre a prevenção da guerra nuclear traduz a redução do estatuto de superpotências à URSS e aos EUA. São potências de primeira categoria, isto é, que podem reciprocamente atingir os respetivos territórios ou levar a guerra apenas aos territórios dos outros, e são de segunda ordem os membros do clube atómico que não podem ter mais ambição do que responder a uma agressão que os atinja na sua área territorial. A querela sobre os euromísseis, no ponto em que se apreciou se as armas inglesas e francesas devem ser tornadas em conta na avaliação geral, assenta no reconhecimento de que é de um segundo plano de potências que se está a discutir. (A Inglaterra e a França )Pequenas potências, segundo o critério dos donos do poder estratégico do “fogo nuclear”,(EUA e URSS) que desenvolvem uma técnica de condomínio procurando assumir a direção dentro da sua área respetiva, de acordo com as suas tradições, experiências, e circunstâncias privativas. Naquilo que diz respeito ao campo soviético, as coisas foram sempre claras, quer na definição ideológica, quer na definição estratégica, quer na organização política do seu espaço. Os conceitos de pátria dos trabalhadores de todo o mundo, de fidelidade socialista, de internacionalismo proletário, são tudo expressões de uma qualificação de hegemonia, na qual a doutrina da soberania limitada é apenas outra forma de dizer o mesmo.”(O PCP deveria ler este último parágrafo.)
“Dentro da NATO foi oportunamente esclarecido que os EUA não têm que consultar os seus aliados quando se trata dos seus interesses mundiais, e por isso nós próprios (Portugal) tivemos a experiência de ver utilizar as facilidades das Lages sem consulta prévia, na emergência do Médio Oriente da guerra dos seis dias, não havendo dúvidas de que a segurança geral poderia ser afetada. A nova categoria de questões chamadas — fora da zona — que a NATO identifica como afetando a segurança do todo embora o conflito surja além dos limites geográficos da Aliança, parece claramente assente na interdependência mundial no sentido de tornar mais fluida a distinção entre questões mundiais dos EUA e questões regionais da NATO. Temos assim que o princípio da hierarquia das potências, de tradição aristocrática, é uma constante da cena internacional, mesmo nos períodos em que a organização se proclama essencialmente democrática desde 1945. Esta organização aristocrática (A NATO — Uma democracia de conveniência), naquilo que respeita ao direito internacional, ainda segue o princípio liberal de proclamar que a lei é igual para todos, aceitando porém que nem todos são iguais perante a mesma lei. Esta desigualdade é manifesta segundo várias perspetivas: a militar, a técnico-científica, a económica, a cultural, a funcional, embora a matriz principal da hierarquia continue a ser a primeira. Por isso, um dos mais notáveis professores do nosso tempo, Raymond Aron, conclui que o fenómeno da guerra ainda é o mais característico e autonomizador das relações internacionais, como disciplina científica, como objeto de estudo, e como variável determinante da hierarquia, das potências . […] O estatuto de grande potência das democracias coloniais europeias foi consumido na última grande guerra (IIGM) como preço da vitória, para se encontrarem ”hoje” como o antigo inimigo alemão, na situação de dependência em relação aos dois antigos aliados que obtiveram a qualificação de superpotências. Que a guerra, e a maneira de a fazer, determinam a hierarquia, parece infelizmente de aceitar.”
Seguindo o pensamento de Raymond Aron, citado por Adriano Moreira, a hierarquia atual é a seguinte: superpotências, donas do “fogo nuclear” no plano estratégico, categoria que apenas parecem poder reivindicar a URSS, os EUA e a China; grandes potências, participantes na posse do “fogo nuclear”, formalmente identificadas como membros permanentes do Conselho de Segurança, mas colocadas no patamar dos teatros regionais, categoria em que entram as antigas grandes democracias coloniais que são a Inglaterra e a França, e o novo poder de potências médias, que eventualmente participam na posse do “fogo nuclear” onde podem ser incluídas potências como Israel, a União Indiana, o Paquistão, pequenas potências, as que têm à sua disposição apenas os meios clássicos de fazer a guerra ao menos defensiva, e nelas ainda podemos fazer distinção segundo o critério que se traduz em saber se possuem capacidade para reproduzir e sustentar autonomamente o seu aparelho militar, ou não.
Perante este cenário traçado por duas personalidades que pensam — Adriano Moreira e Raymond Aron — a conclusão é a de que a União Europeia dispõe apenas do “fogo nuclear” da França para suportar uma política autónoma no teatro mundial. O poder do Reino Unido está subcontratado pelos EUA e a Alemanha é um fabricante de armas convencionais para teatros regionais.
A União Europeia podia ter desenvolvido uma política de “interface” entre as três superpotências, uma estratégia de dependências múltiplas, que tem riscos conhecidos, mas também potencialidades viáveis de aproveitar a dissuasão nuclear que impede o confronto direto entre as superpotências para garantir um elevado grau de autonomia, bastando para tal um poder militar inibidor de ataques. Os medíocres menos que dirigem a Europa, entre a cobardia e a falta de visão, preferiram a dependência e a alienação da sua liberdade (da nossa), no que é um caminho sem retorno e causará alterações radicais no modo de vida dos europeus, a quem será imposto o modelo americano de liberalismo, de desconstrução do estado social, isto porque quem dá o pão dá a educação. Pelo caminho alienaram os dois fatores que asseguravam os meios para sustentar o seu modo de vida: energia barata (o gás russo) e um mercado absorvedor dos seus produtos manufaturados de média e alta tecnologia, a Eurásia.
HIERARQUIA DAS POTÊNCIAS: DEPENDÊNCIA E ALIENAÇÃO — Nação e Defesa N 30 (1984)– Adriano Moreira